Eu fui uma menina apaixonada por dragões. Não tem muito o que explicar. Tem criatura mais incrível?
Nimona é um dragão. E um tubarão. E um gato, um polvo, um pássaro… E Nimona é uma menina. E não é uma menina. Nimona é um monstro, e não é um monstro.
“Nimona” era um filme. Com lançamento previsto para janeiro de 2022, a produção foi cancelada – apesar de 75% do filme já estar concluído. A gigante Disney tem estabelecido seu monopólio do entretenimento nos últimos anos com a aquisição de diversas propriedades culturais, de Star Wars ao Universo Cinemático da Marvel. A Blue Sky Studios, que produziu filmes como A Era do Gelo e Rio, foi adquirida em 2019 e fechada pela Disney no início desse ano, deixando Nimona sem conclusão ou lançamento.
O filme baseava-se na HQ de ND Stevenson, autora de Lumberjanes, e criadora e diretora do reboot de She-Ra. O premiado livro, lançado no Brasil pela Intrínseca, brinca com arquétipos e estereótipos dos contos fantásticos com uma abordagem muitíssima contemporânea, imediatamente desafiando o leitor a se perguntar quem são os verdadeiros heróis e vilões dessa história sobre meninas e/ou monstros, sobre sistemas injustos e amores proibidos, sobre magia e ciência. Mas, apesar das aparências, não há nada de dicotômico nessa história.
Enquanto profissional da indústria e fã do trabalho de Stevenson, compartilho desse luto por um projeto que sequer tive a oportunidade de conhecer, e penso na dor que todos os envolvidos devem estar sentindo após se dedicarem ao projeto pelos últimos 6 anos.
Já faz tempo acompanho Stevenson de perto porque, como ela, eu era uma jovem artista na internet. Duas meninas desajustadas que gostavam de dragões e que queriam desenhar suas próprias histórias. Comecei a ler seu blog quando eu estava no colégio e Stevenson na faculdade, blog no qual ela começou a publicar Nimona originalmente como webcomic. Crescemos juntas e paralelas, duas retas distintas que nunca se encontraram mas de trajetórias com coordenadas não muito diferentes. Visitava seu blog como quem visitava a um amigo, e como faziam os antigos, eu digitava de cor o endereço do seu site como quem memoriza o endereço da casa de um amigo que se tem o costume de visitar. Uma amizade com quem nunca troquei uma palavra.
Talvez por isso eu goste tanto desse quadrinho. Ao abrir o livro, o leitor se depara com uma dedicatória: para todas as meninas monstros. De certa forma, Nimona é uma ode a própria existência de Stevenson. E, portanto, Nimona é uma ode a mim. O sucesso de sua narrativa é a promessa de que minha existência é possível.
ND Stevenson, que como tantas desenhava em seu cantinho na internet, depositando um pouquinho de si nas narrativas pelas quais era apaixonada, hoje é reconhecida como uma proeminente criadora da indústria de entretenimento estadunidense. Com os anos, a acompanhei em seus pequenos diários desenhados fazendo as pazes com suas angústias e frustrações pessoais; a vi se apaixonar e se casar com a também quadrinista Molly Ostertag, e vi quando se tornou a responsável pelo reboot da icônica She-Ra, quando ela própria se viu na obrigação de encarnar, de certa forma, um símbolo jovem de empoderamento feminino. Tudo isso e Stevenson era apenas uma menina.
Era?
Pela natureza e histórico do meu trabalho autoral, também me vi colocada nesse lugar de porta-voz da Artista Mulher – perdi as contas de quantas vezes já respondi em entrevistas como é produzir quadrinhos sendo mulher, ou qualquer outra variação dessa pergunta. Mas esse tipo de questão raramente traz um questionamento mais profundo, é uma pergunta feita quase que de praxe e acaba por insistir num engajamento social raso, num feminismo de aparências que não parece se questionar muito sobre quem são afinal essas autoras. No meu caso e no de Stevenson, fomos um dia meninas. Mas não sou uma menina. E Stevenson também não.
Recentemente, Stevenson falou em suas redes – mais uma vez, através de desenhos também -, sobre sua mastectomia e suas vivências de gênero, essa coisa tão dinâmica. Falou sobre a terrível pressão de ser a “mulher empoderada ideal” sem sequer sentir-se mulher, pelo bem de She-Ra e tudo o que a história representa. E falou, enfim, sobre a liberdade de poder ser quem é, e sobre o prazer da dúvida, da descoberta e da procura. Sobre ser não-binário e sobre seus pronomes, que também são masculinos.
Com o passar do tempo e sem surpresa alguma, fui descobrindo que Stevenson é muito como eu, e que eu sou muito como Stevenson. E, cada vez mais, somos muito como Nimona, talvez até de formas que não imaginávamos – sempre lutando, sempre mudando, procurando, meio menina e meio monstro, mas nenhum dos dois.
E por isso dói saber que, tão perto de ser concluído e mesmo sendo tantas coisas, Nimona não será filme. Em um momento em que a Disney opta por fazer e refazer seus sucessos passados, cópias um tanto vazias de clássicos como Mulan, é lamentável que um filme baseado em uma história cheia de originalidade, escrita e desenhada por uma autora queer, não encontre através das telas uma nova audiência – e não faça companhia para, como um dia fomos, tantas outras meninas monstros.
Assim tem se concretizado o maior defeito da Disney: mania de perfeição, ou seja lá o que for percebido como tal. As próprias princesas são a personificação da identidade da empresa, caracterizada por uma “magia” quase virginal, homogênea.
Ser queer e ser feminista é o oposto: é sobre ser imperfeito, diferente, e muitas vezes o pária até mesmo entre aqueles que deveriam ser seus iguais. E principalmente é sobre diversidade, sobre as infinitas formas de ser e crescer. Por isso Nimona nunca será princesa, e ainda bem.
Ela é uma criatura muito mais incrível.
Originalmente publicado em https://minadehq.com.br/dragoes-e-monopolios-de-princesas/ em 26 de fevereiro de 2021.