O truque de fazer desaparecer é uma das mais básicas ilusões. O fascínio com a invisibilidade é antigo, mitológico, e até hoje permeia a ficção em cobiçados anéis capazes de ocultar seus mestres, ou no DNA de mulheres fantásticas e de cientistas insanos, ou mesmo nas capas enfeitiçadas de pequenos bruxos. De certa forma, ser invisível é ser invulnerável, porque dificilmente se pode acertar o que não se vê.
As possibilidades quase mágicas de ser invisível não passam despercebidas por quem é trans. A “passabilidade” é a capacidade de ser reconhecido pelo gênero desejado de prontidão, sem ser apontado como diferente; em outras palavras, é poder andar à paisana em um mundo de pessoas cisgênero, ou seja, de pessoas que não são trans e identificam-se com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer.
Mas não se confunda: isso tampouco significa que o objetivo de pessoas trans seja “parecer” cis, apesar de ser uma noção comum no imaginário coletivo; talvez por ser difícil compreender por que, afinal, alguém desejaria parecer e ser trans, ou talvez por se tratar de uma ideia compatível com histórias de grande alcance midiático, que costumam reproduzir uma narrativa bastante linear de transição como para “simplificar” o assunto para a audiência, despindo a verdadeira experiência de suas nuances e complexidades. Frequentemente, essas histórias são bruscamente interrompidas, por vezes até com extrema violência, como em “Meninos Não Choram” (1999) e “A Garota Dinamarquesa” (2015), duas biopics (biographic picture) indicadas ao Oscar que levantaram debates por acadêmicos, cinéfilos e grande público.
Janeiro é o mês da visibilidade trans, e toda data dedicada a visibilidade presume, antes de tudo, um estado invisível prejudicial. Mas como pode ser invisível aquilo que é estigmatizado por princípio?
Trata-se de uma “invisibilidade” que diz respeito muito mais a uma visão social seletiva do que a nossa capacidade de ser (in)visível. Porque a invisibilidade sofrida pela população trans é a da negligência, seja institucional ou familiar, seja até midiática, narrativa, ficcional e fantástica (afinal, pode haver dragões e magia, mas não haviam inventado ainda LGBTs na terra-média…). Pois só se enxerga a população trans em papéis específicos e cruéis e até meramente decorativos, como excentricidades da paisagem urbana – como se corpos trans só coubessem em lugares de violência.
A perversidade de precisarmos de um dia dedicado à nossa visibilidade não está na hipótese de sermos invisíveis, mas sim no fato de fecharem os olhos para o que já está à mostra. No fim, até no faz-de-conta as histórias nos são tiradas de nós, colocando-nos em papéis de personagens vilanescos, vítimas, ou ambos. A visibilidade construída, quando feita a partir de olhares cis, pode ser também impregnada de certa perversidade porque reproduz a pessoa trans como um objeto narrativo a ser manipulado.
Em suma, isso significa que não basta ver. E também não basta criar representações levianas. É bastante sintomático o fato de que, ao pensarmos em personagens trans, acabamos recorrendo a histórias contadas por pessoas que não são trans. Como no caso de Lili Elbe, a garota dinamarquesa, uma pintora de vida extraordinária que realmente existiu, mas cuja vida lhe é um pouco roubada ao ser retratada em um filme hollywoodiano que não se baseia na reconstrução de suas experiências, mas sim em um romance ficcional apenas levemente inspirado em sua vida. A própria escolha de um ator cisgênero para interpretar Elbe foi também duramente criticada por ativistas LGBT+. Ao celebrarmos “A Garota Dinamarquesa”, não estamos celebrando a vida de Lili Elbe, e tampouco estamos celebrando uma “história trans”; trata-se de uma história que performa a transgeneridade como um recurso narrativo, um fetiche fantástico.
Mas sendo assim, nenhum autor cis pode escrever sobre pessoas trans? Limitar quem pode ou não criar histórias trans não termina por contribuir para seu apagamento? Essa postura não acaba por engessar processos criativos, diálogos e discussões sobre o tema? A resposta curta é: não.
A resposta longa é sugerida pela artista Diana Salu, em seu quadrinho “Então você quer escrever personagens trans?”. Salu ilustra de forma didática e exemplar como podemos abordar a transgeneridade na ficção – o quadrinho está disponível na íntegra em seu Instagram (www.instagram.com/p/B7CNFpqllym/). Antes de oferecer soluções, a HQ provoca o leitor com o melhor tipo de pergunta: o tipo que nos deixa desconfortáveis. Qual a motivação para um autor cis escrever um personagem trans? Com quantas pessoas trans o autor convive, se é que convive? Essas pessoas confiariam suas histórias ao autor? E estaria o autor disposto a remunerá-las por seu trabalho – seja pelo feedback, pela co-autoria no projeto, consultoria ou leitura sensível? Conforme Salu aponta, a população trans já sofre de uma dificuldade considerável para se inserir no mercado de trabalho. Se um autor se compromete a escrever um personagem trans porque quer trazer visibilidade para essa população ou ter algum tipo de impacto positivo, é coerente que isso se estenda também à prática de trabalho do autor.
A questão é, então, ser capaz de transformar essa visibilidade em agenciamento para os verdadeiros protagonistas. E, principalmente, é necessário celebrar e escutar vozes trans: vozes da atualidade, que estão fazendo uma diferença real com as próprias mãos, mas que nem sempre têm o merecido reconhecimento. Não nos limitemos a celebrar mestres já conhecidos, como a cartunista Laerte; o leitorado só tem a ganhar com inclusões em seu repertório, com os quadrinhos autobiográficos de Luiza Lemos e de Alice Pereira, pois toda transição é única, até em suas coincidências; nas ressignificações simbólicas das ilustrações de Hyde Nikolaev, e no trabalho de Lino Arruda e seus quadrinhos repletos de metáforas e sarcasmos, também registrando suas próprias vivências enquanto pessoa transmasculina; e, como é essencial que leitores, jornalistas, editores e produtores de eventos entendam, pessoas trans não escrevem somente sobre transgeneridade – em nada adianta lembrar de autores trans quando é conveniente e esquecê-los nas outras ocasiões! Lembrem-se de convidarem estes autores para falar também sobre questões outras, sobre arte, sobre mercado, sobre cor e forma. Que o trabalho de Noelle Stevenson não seja reduzido ao “girl power” e lembrem sempre dos monstros que desenhou antes do reboot de She-Ra, e de sua vivência também noutros espectros de gênero registradas em seus quadrinhos posteriores. Que sejam celebrados os quadrinhos iridescentes de Ea Damaia. Que para sempre sejam feitas histórias de profundidade e poesia como Diana Salu.
*Este texto optou por mencionar somente autores trans que já falaram sobre sua transgeneridade publicamente. A autonomia de possuir sua própria história é, também, decidir como contá-la, se é que ela será contada. Além de que autor algum deve aos seus leitores a sua vida privada.